quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Modelos para o Brasil. China? - João Fábio Bertonha


Como último texto desta série antes da conclusão e síntese, escolhi abordar a China e tal escolha não foi ocasional. Em termos de crescimento econômico, a China é, com certeza, o país mais bem sucedido nas últimas décadas. Mesmo com a precariedade e pouca confiabilidade das estatísticas chinesas, é inegável que o país vem mantendo, há quase trinta anos, índices de crescimento do PIB invejáveis e contínuos. Não espanta que o gigante asiático seja a grande promessa econômica do século XXI, que as matérias a respeito do país em jornais, revistas, televisão e etc. se sucedam e que a experiência chinesa seja olhada com tanta atenção pelo resto do mundo.

Em última instância, na verdade, o modelo chinês não é tão inovador ou impressionante assim. As lideranças chinesas decidiram, a partir, grosso modo, da morte de Mao Tse Tung, que a China não poderia atingir uma posição de desenvolvimento econômico e/ou atingir o status de superpotência desejado sem que o país crescesse de forma acentuada, o que não estava acontecendo durante o período 1949-1979.

A decisão foi, assim, pela abertura ao capitalismo internacional, de forma que os recursos financeiros e tecnológicos do mercado mundial fossem as vitaminas que iriam dinamizar a economia chinesa. As grandes multinacionais européias, americanas e asiáticas (como do Japão, Taiwan e da diáspora chinesa) poderiam contar com a mão-de-obra barata, abundante e disciplinada da China para a fabricação de seus produtos, especialmente nas etapas em que o uso intensivo da mesma era necessário. Em retorno, teriam altas taxas de lucro e a possibilidade de reexportar os seus produtos sem dificuldades ou problemas, além de poderem desfrutar do crescente mercado consumidor chinês. Um acordo lucrativo para ambas as partes e no qual a China entrou, efetivamente, com o único elemento produtivo que ela tinha em abundância, ou seja, gente.

Os efeitos desta aposta estão mais do que claros. As grandes empresas multinacionais tiveram e têm grandes lucros no país e, ao mesmo tempo, o planeta foi inundado por produtos fabricados (ou, ao menos, finalizados) na China, com efeitos na demanda de matérias primas, na inflação mundial, etc. A China se inseriu na ordem capitalista mundial e está se beneficiando dela, ao mesmo tempo em que traz benefícios e desafios ao resto do mundo.

Ninguém pode ignorar a questão, claro, se o país ainda poderia ser chamado de comunista. Em termos de estrutura política, apesar de recentes esboços de alguma abertura, o país ainda é uma ditadura unipartidária e que se encaixaria nos moldes dos velhos países comunistas. Na economia e nos costumes, o velho e o novo convivem, mas a parte dinâmica da economia é a capitalista, do litoral, enquanto as velhas empresas estatais e o campo patinam e velhas características negativas do mundo comunista, como a burocracia e a corrupção, permanecem.

É óbvio que a elite comunista alega que apenas utiliza o capitalismo para dinamizar as forças produtivas locais, a espera da chegada do verdadeiro comunismo. Em termos marxistas, faria sentido. No entanto, parece pouco provável que um comunismo ao velho estilo seja reinstalado no país e ele adquire cada vez mais tons do capitalismo ocidental (o que inclui crescentes desigualdades sociais e consumismo), o que o deixa numa situação no mínimo ambígua.

De qualquer forma, o que é interessante em termos da discussão dessa série é como os chineses souberam se integrar no capitalismo internacional e adotar princípios do liberalismo pregado pelo Ocidente, ao mesmo tempo em que recusam categoricamente elementos deste liberalismo quando não os interessa.

Assim, os chineses garantem a livre remessa de lucros e dividendos às empresas internacionais e facilitam a exportação de produtos. A disciplina e a docilidade da mão-de-obra e a estabilidade macroeconômica também são garantidas pelo Estado, numa outra prova de que apenas Estados autoritários podem garantir que a população aceite plenamente certas características das políticas liberais.

Por outro lado, o câmbio chinês permanece controlado, apesar das imensas pressões internacionais, a propriedade intelectual só é respeitada quando se interessa e há subsídios e outros mecanismos para estimular as exportações. Do mesmo modo, apesar de muitas empresas estatais terem sido fechadas por ineficiência, o modelo chinês não indica uma privatização radical, assim como tenta manter, via subsídios e ação do Estado, um padrão de vida mínimo no campo e nas cidades. A questão aqui é, em essência, garantir um mínimo de estabilidade social, que uma privatização radical ou um total abandono do campo às leis de mercado tornaria impossível controlar, mesmo com repressão maciça.

É difícil saber exatamente, claro, a trajetória do modelo chinês nos anos a seguir, mas é razoável acreditar que seu índice de crescimento econômico continuará alto, salvo algum acontecimento inesperado, e isto por vários elementos.

Em primeiro lugar, ainda há centenas de milhões de camponeses chineses se dirigindo ou prontos a se dirigir às cidades em busca de trabalho. Com efeito, a transição para o mundo moderno (urbano e industrial) está se dando, na China, agora, e isso indica uma reserva de mão-de-obra barata aparentemente sem fim. Dessa forma, a China poderá continuar a manter sua simbiose com o mercado internacional via trabalho sem problemas ainda por muitos anos.

Outro motivo é que, aos poucos, a economia chinesa vai se descolando desse papel de supridor de trabalho barato às grandes transnacionais. Esse elemento, com certeza, continuará e será o motor do crescimento chinês ainda por muitos anos. Mas o mercado interno começa a se desenvolver à medida em que o padrão de vida cresce e uma nova classe média se forma. Empresas chinesas e internacionais começam a se movimentar para atender este mercado e grandes empresas chinesas também estão surgindo, algumas já com imenso destaque na economia internacional. A China caminha, assim, para se tornar uma economia moderna, sem depender exclusivamente do mercado externo, mas ligado fortemente a este.

Por fim, parece haver, no planejamento a longo prazo da liderança chinesa, a visão clara, ainda que cheia de improvisações e contradições, de que o modelo atual chinês tem um limite temporal claro. Eles parecem perceber que não apenas é impossível à China se manter eternamente no papel de oficina do mundo (já que, a medida em que sua mão-de-obra for se tornando mais cara, haverá transferência de indústrias para outros países, como já começa a ocorrer em alguns setores), como que isso não seria desejável, pelo que o país começa a se preparar para uma nova fase, em que a China se integrará à economia mundial também pela via do desenvolvimento científico e educacional do seu povo.

Claro que a China ainda é uma nação com um índice educacional baixo e suas universidades e centros de pesquisa ainda estão distantes das da Europa, dos Estados Unidos e do Japão. Sua infra-estrutura também é limitada na maioria das áreas. Não obstante, investimentos maciços têm sido direcionados a estas áreas (infra-estrutura, educação e ciência), no que parece ser um esforço planejado para garantir um futuro menos dependente do usufruto de mão-de-obra barata.

Os chineses, realmente, têm tentado melhorar suas escolas primárias, onde há 11 milhões de professores e uns 220 milhões de alunos. Suas universidades, com seus 20 milhões de estudantes, têm recebido créditos cada vez maiores e estimula-se o intercâmbio e a formação dos professores universitários. A produção do conhecimento ainda é vigiada, especialmente nas ciências humanas, e há imensas deficiências no relacionamento da Universidade com o mercado, na questão da qualidade do ensino, etc., mas saltos grandes têm sido feitos e há a intenção de que eles continuem.

Se este esforço dará resultado, é ponto em aberto. Se a combinação de crescimento econômico, melhora relativa das condições sociais e Estado centralizado poderá se manter e conseguirá conter as imensas tensões sociais advindas de um projeto de modernização tão amplo, também é uma questão cuja resposta só virá no devido tempo. Do mesmo modo, a China será um excelente campo de testes para verificarmos se uma sociedade moderna implica em algum tipo de democracia ou se é possível a convivência ad infinitum entre autoritarismo e economia de mercado. Enfim, mais pontos em aberto do que certezas.

No que se refere ao Brasil, fica a dúvida do quanto da experiência chinesa podemos aproveitar, ainda que a mídia brasileira tenha sido pródiga em apresentar informações sobre o “milagre chinês” e algumas pessoas acreditem que seria este o melhor caminho a seguir.

De fato, o Brasil está num estágio, em termos de modernidade, distante do chinês. Nossa população é majoritariamente urbana e com um nível educacional e de renda médio um pouco melhor, o que se reflete em aspirações e expectativas maiores. Temos leis trabalhistas e ambientais que nem sempre são adequadas e respeitadas, mas que são melhores do que as chinesas. Por fim, vivemos numa democracia (imperfeita que seja, mas democracia), o que impediria o Estado de controlar a sociedade no nível necessário para promover mudanças tão intensas e rápidas. O “modelo chinês”, no Brasil, seria retrocesso.

Realmente, para sermos uma nova China, teríamos que eliminar a maioria das nossas leis trabalhistas e ambientais, diminuir nossos salários e redes de proteção social para garantir custos baixos e usar a mão forte do Estado, provavelmente eliminando a democracia, para conter a inevitável tensão social. E mesmo assim talvez não fosse suficiente, pois não dispomos da imensa reserva de gente da China. Não parece ser o caminho adequado, portanto, para o Brasil.

Mas algumas lições talvez possam ser aprendidas. A primeira é que o capitalismo internacional e globalizado não é um demônio e que a questão principal não é aceitá-lo ou recusá-lo, mas pensar em como se integrar a ele de forma não subordinada, obtendo concessões e com ganhos de lado a lado. Ou seja, projetos nacionais de longo prazo ainda são não apenas possíveis como necessários, até para um diálogo com o mercado internacional. Em segundo lugar, nota-se que seguir a cartilha dos poderosos nem sempre é necessário e que, muitas vezes, é possível e imperativo fugir dela.

Por fim, a China indica como um desenvolvimento baseado em exploração da mão-de-obra pode ser um excelente começo para uma sociedade, mas dificilmente o fim desejado. O mesmo poderia ser dito num baseado na agricultura ou na exploração mineral. As grandes sociedades do futuro terão, se quiserem ser fortes e ricas, que atingir a modernidade industrial, mas também superá-la pela pós-modernidade do conhecimento. A China parece ter entendido isto e vale a pena não esquecer disto aqui, do outro lado do mundo.